Crítica | O Exorcista

O MEDO COMO ÚNICO RECURSO

Clássico de William Friedkin pinta retrato comovente sobre o medo da vida e da morte


Acredito que não importa quanto tempo passe, as pessoas continuarão classificando filmes de Terror por o quão assustadores são.

Se deu medo, é bom. Se não deu medo, é ruim.

Apenas essa convenção seria o suficiente para uma tese de mestrado (e existem algumas por aí), falha por ignorar tudo que o Horror pode significar, e ignorante por desconhecer tudo o que significa. Claro que, no início do Cinema e ao longo de suas primeiras décadas, cada novo desdobramento na linguagem vinha como uma novidade capaz de aumentar exponencialmente o impacto de um filme: desde um trem que chega à estação à uma mistura de Ketchup e corante que parece sangue. Mas hoje, 2022, ainda sem réplicas de Michael Myers seguindo as pessoas dentro das sessões, acredito que chegamos num ponto quase coletivo de virada.

Mesmo eu, um confesso cagão, acredito que já cheguei no meu: existem apenas tantos zumbis, espíritos e assassinos em série, quando se conhece alguns, se conhece todos. E se formos aplicar um dos conceitos de Carl Jung, ao mesmo tempo em que todos sabem que Darth Vader é pai de Luke sem necessariamente saber quem são os dois, o século e meio de Cinema já impregnou no consciente coletivo de que ir atrás do barulho na cozinha é uma má ideia.

É só ver o quão em desuso entrou o Slasher nos últimos anos, um dos gêneros mais esgotados pré-virada do milênio. Peça para qualquer cinéfilo te apontar os melhores filmes de Horror da década passada, e entre As Visitas, Corras e Hereditários, pouquíssimos trazem assassinos em série. Todos já sabem o que vai ocorrer quando dois adolescentes planejam perder a virgindade em uma sexta-feira 13, portanto, julgam que não há nada de interessante para assistir ali - exceto, possivelmente, o próprio sexo, mas como vivemos uma era que pede por botões de pular nudez nos serviços de streaming, diria que nem isso.

Porém, e logicamente, o sub-gênero que mais parece atrair as pessoas segue sendo o que envolve o oculto. Seja ele uma família meio pirada, velhinhos com problemas mentais, ou um casal que passa por aí fazendo o Scooby Do. Tudo que envolva forças aparentemente sobrenaturais ainda surge como um ponto fraco para uma geração que cada vez menos acredita em qualquer coisa - um paradoxo divertido e, talvez, preocupante. Provavelmente por ter uma natureza desconhecida na própria vida real, esse diagnóstico é interessante e revela muito sobre onde estamos, mas por mais que o horror possa se construir coletivamente, segue sendo uma experiência individual e que reflete a experiência única de quem o assiste.

Pra mim, embora viva um momento de dúvidas quanto ao que acredito ou não, a simples sugestão de algo que não compreendo tendo objetivos maléficos é o suficiente para gerar um arrepio que nem um Jason Alienígena poderia. O que não diminui meu apreço por filmes de Argento, Cronenberg e De Palma, mas que me faz ter de me preparar psicologicamente para um Kiyoshi Kurosawa, por exemplo.

Ainda assim, fazia tempo que um filme não me pegava tanto como O Exorcista - que finalmente assisti depois de anos evitando. Por sua técnica, sim, mas principalmente pela exaustão causada por sua narrativa. Ao final, me senti esgotado emocionalmente, como se absorvesse o drama daquelas pessoas e me tornasse também suscetível ao desespero que vivenciaram. Um desespero que surge como forma máxima do medo, presas em meio a um embate entre ciência e religião, em um limbo de desconhecimento que impede qualquer ação de ser tomada.

E por duas horas fiquei ali, entre aquele apartamento amaldiçoado e a igreja opressiva, onde o padre questiona sua fé de maneira que evoca o vazio sinistro de Diário de um Pároco de Aldeia - e William Friedkin alterna perfeitamente entre um estilo quase documental, que já havia surgido em Éric Rohmer, e uma mise-en-scène carregada, de texturas marcantes e de um cinza que gradualmente se torna um melancólico azul ou um escuro sufocante - o plano mais conhecido é tomado pelos dois.

Dos filmes do gênero que melhor explora suas locações? Com uma decupagem matemática, que isola quadros e cômodos sem sugerir qualquer conexão entre as distâncias e espaços vazios que separam mãe e filha, O Exorcista se movimenta por blocos, de acontecimentos e de reações, que retratam rituais comuns de uma sociedade burguesa, contrapostos pelo anormal que ocorre no quarto da menina.

Friedkin excede também no Body Horror, tanto na nojeira da gosma Meus Prêmios Nick, como no choque das famosas cenas que geraram desmaios nos Cinemas ao redor do mundo - as cirurgias são filmadas de maneira tão indiferente e invasiva que quase me remetem ao sofrimento provocado por um Mizoguchi, mas trazido para o Gore. E se a dublagem de Linda Blair é visível, o impacto de ver uma criança encenar o que ela encena, ou falar o que fala, não se torna menor. O rosto da criatura, piscando volta e meia, remete ao Cinema mudo e seus efeitos práticos, e segue funcionando como além de uma mera alegoria, 49 anos depois.

A encenação é também brilhante, com Friedkin conduzindo os atores de maneira que os permitem descarregar suas próprias tensões enquanto a câmera apenas documenta o que seria o exorcismo, por exemplo. As frases continuadas e conjuntas, a ciência prévia da figura carregada de Max von Sydow, o desespero evidente de Ellen Burstyn, a morbidade da menina, são todos os núcleos funcionando em torno da putrefação emocional que é representada pelo que ocorre em uma única cama.

Mas por toda sua maestria, o que mais esmaga em O Exorcista é que seu mal vem de dentro, vem de traumas adormecidos - um possível abuso, jamais confirmado -, relacionáveis e que não apenas potencializam a força do desconhecido no filme, mas em quem o assiste. No fim, é o drama daquela mãe prestes a perder uma filha, de um padre que coloca as dúvidas de lado quando sua fé pode salvar alguém, é a exaustão de um filme em tentar responder algo impossível - a simples sugestão de que a menina poderia estar inventando tudo na cena da água benta é um toque assustador.

Se torna inclusive difícil categorizar O Exorcista como um filme crente ou não. Definitivamente acredita em um altruísmo, em uma purificação pela doação física extrema (no caso, a morte), mas o embate entre ciência e religião torna tudo ainda mais extenuante. Um fugindo do outro para tentar explicar algo que, por mais exagerado que seja, representa um drama que qualquer um de nós poderia viver. Um retrato sobre a depressão, e sobre o medo de não existirem alternativas a se seguir se não, novamente, o fim.

10

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