Crítica | A Viagem de Chihiro

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Uma das principais razões pelas quais assistimos filmes é para conhecermos mundos novos, com pessoas, costumes e regras diferentes do nosso.

Por isso, sou um advogado da tal “escola sem dublagem”. Se estou assistindo a um filme japonês, quero ouvir os personagens falando seu idioma e não versões paulista/carioca suas, da mesma forma que seria impossível assistir a um filme rodado no nordeste com o sotaque de um gaúcho e julgar que se está tendo uma experiência completa. Na grande maioria das vezes, a imersão é essencial para se apreciar uma obra por completo. No caso de “A Viagem de Chihiro”, ela se mostra indispensável.

Acompanhando a jornada da jovem Chihiro quando esta se perde em um mundo de espíritos, somos convidados a conhecer um pouco do rico folclore japonês, este um país que, por mais que seja menor que muitos estados brasileiros, faz questão de mostrar como sua cultura é diversificada e como dentro de um mesmo território há diversos mundos a serem explorados.

E este é um que, sejamos honestos, não se faz nada convidativo. (Isso é um elogio)

A quantidade de criaturas assustadoras só não é maior que a de figuras grotescas e percebam como até mesmo esta descrição apenas prova como sou um ignorante quanto a todas elas. Pois para os homens sapo, que trabalham na casa de banho onde Chihiro se “abriga” durante sua estadia naquele mundo, sua aparência é natural, assim como para nós humanos é reconfortante enxergar outro igual mesmo que, nas histórias protagonizadas apenas por humanos, geralmente metade deles sejam maus. Logicamente, deveríamos temer mais algo que sabemos que tem uma grande chance de nos fazer mal, do que um grupo apenas por ser diferente, mas este é um princípio que rege como regra na humanidade até os dias de hoje.

Em cima disso, se desenvolve um dos principais temas desta obra prima de Hayao Miyazaki: o medo do desconhecido, seja ele externo ou interno. Tema este que reflete não apenas na forma como Chihiro inicialmente vê aquele mundo, mas como muitas meninas de sua idade encaram a fase da vida onde estão. Neste sentido, esta animação funciona tanto como uma excelente fantasia, como um coming of age revelador e contemplativo, que além de analisar o papel daquela menina em meio a sociedade a sua volta, se ocupa em analisar esta última com olhos realistas e fundamentalmente críticos.

Perceba, por exemplo, um dos espíritos que Chihiro ajuda e, como ao libertá-lo de uma quantidade gigantesca de lixo, o torna, bem, livre. Assim como o próprio Haku que, transformado em um dragão pelas magias que aprendeu, salvou Chihiro em um evento passado quando havia um rio onde hoje há casas e subúrbio. Já o inicialmente assustador No-Face toma contornos quase tristes quando entendemos que tudo que ele procura é, justamente, a mesma identidade que tentam roubar de Chihiro e de todos os humanos que acabam naquele lugar por acaso. Quando ele percebe que não consegue ludibriar a menina com ouro, ele fica consideravelmente fascinado e decide seguir-la até, finalmente, encontrar alguém que se dispõe a lhe dar a atenção que tanto necessitava, sem pedir nada em troca se não ajuda e companhia.

Em algum momento da narrativa, julgamos todos estes personagens, assim como o perturbador gigante bebê e sua mãe igualmente desproporcional, apenas para aprender que não há sequer um deles que não possua um outro lado, uma motivação, um medo.

E se visualmente é um pleonasmo elogiar o trabalho do Studio Ghibli - que, para mim, desbancam Pixar e Disney como melhores no ramo das animações -, aqui eles atingiram um patamar que julgo praticamente impossível de ser superado. A inventividade não apenas das criaturas, mas os detalhes dos cenários que vão desde a textura das paredes às comidas que podemos quase sentir o cheiro, é praticamente indescritível. Somos literalmente transportados para aquele mundo e cada aresta sua está inundada com detalhes que mais revelam sobre si próprio.

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Acredito que, caso fosse apenas um filme imersivo sem um núcleo narrativo principal “…Chihiro” ainda estaria entre os melhores do estúdio, mas para complementar seu apuro técnico está uma história intrigante, centrada em torno de uma das melhores personagens que já tive o prazer de acompanhar. Assistir à gradativa evolução de Chihiro, que passa a encarar os aspectos daquele mundo com uma maturidade admirável, é uma sensação semelhante à que se tem com a série “Harry Potter”: orgulho, de alguém que passamos a conhecer tão bem. O fato de este ser um filme de duas horas, e não uma saga com oito filmes, exemplifica bem a qualidade da narrativa.

Logo, quando a menina que sai por aquele túnel não é a mesma que entrou, sentimos uma amálgama de emoções conflitantes. Alívio por ela estar indo para casa, orgulho por quem se tornou e uma pontada de egoísmo, por sabermos que não mais poderemos acompanhar sua jornada, seja ela no mundo dos espíritos ou em sua vida no mundo real.

Magistral do início ao fim, “A Viagem de Chihiro” é uma das melhores animações de todos os tempos e, talvez, a melhor do século 21.

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