Crítica | O Menino e o Monstro

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Quando se assiste à muitos filmes, não é assim tão raro encontrar alguns deles que mexam com você, mas este “The Boy and The Beast” tem algo de especial.

Sou um fã confesso de animes e mangás, apoiaria Goku numa luta contra o Super Homem sem pensar duas vezes e julgo impossível que Hollywood consiga fazer obras com o mesmo grau de originalidade que títulos como “Death Note” (que a Netflix conseguiu estragar) ou mais criatividade narrativa do que o, ainda, subestimado (e melhor que “Stranger Things”, tenho dito) “The Promissed Neverland”, para citar alguns míseros exemplos. E se comentei apenas sobre títulos da Shonnen Jump - revista de mangás semanal japonesa dedicada ao público infanto juvenil, é porque este filme de Mamoru Hosoda se encaixa perfeitamente na temática que trouxe clássicos como os citados acima, assim como “Naruto”, “One Piece”, “Bleach”, entre tantos outros.

Nele, que é apenas o segundo de Hosoda com o estúdio Chizu (o qual fundou), um garoto chamado Ren perde a mãe e, ao se recusar a viver com os guardiões legais e não ter ideia sobre o paradeiro do pai, decide fugir e viver sozinho nas ruas de Shibuya até que, ao encontrar uma espécie de homem-urso, acaba se perdendo em um beco e encontra um portal para um mundo de monstros. Lá ele se torna discípulo de Komatetsu, um dos dois candidatos ao trono de Senhor que deverá ser disputado assim que o atual decidir se aposentar e reencarnar.

Com uma premissa simples que alude a diversos outros filmes, e com um cenário rico em iconografia e mitologia japonesa, não seria errado caracterizar este filme como uma mistura de “Karatê Kid” e “Zootopia” (para os não familiarizados com o universo anime), e talvez seja mais apropriado jogar nomes como “Inuyasha” e “YuYu Hakusho” na mistura. Mas mesmo não ostentando originalidade em estrutura, a forma como a história é contada e os diversos temas que aborda com tamanha profundidade fazem de “O Menino e O Monstro” um prato cheio para o público infantil, para os amantes da cultura japonesa e para os pais que, ao se depararem com o longa em serviços como a Netflix (onde está disponível), tendem a se surpreender e se divertir pelas ligeiras duas horas da projeção.

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Visualmente irrepreensível, é notável como o cineasta aborda os dois mundos que vemos em tela, pois se ambos os cenários são ricos em cores e lotados de pessoas/criaturas - detalhadamente animadas como indivíduos e não como cenário - Shibuya surge como uma cidade moderna, impessoal e repleta de cores artificiais, enquanto o mundo dos monstros apresenta uma sociedade menos avançada tecnologicamente, mas com uma vivacidade presente tanto em suas locações como em seus habitantes. No mundo real, milhares de pessoas transitam sem bem prestarem atenção no que está a sua volta, onde um menino aparentemente perdido e desnorteado é notado apenas por policiais, e a forma como Hosoda coloca nossa linha de visão na mesma altura da de Ren serve para nos fazer simpatizar ainda mais com aquela criança. Já no mundo dos monstros, onde ele é praticamente único, todos os olhos parecem estar no gigante urso e em seu aprendiz.

Outros elementos interessantes são as tomadas gravadas por câmeras de segurança no mundo real que conversa diretamente com a artificialidade que já comentei sobre nosso mundo, além de alguns planos longos, onde a câmera desliza horizontalmente e percebemos coisas ou pessoas que, apesar de tão próximas de Ren/Kyuta, são invisíveis para ele enquanto também são para nós, reforçando ainda mais nosso senso de relação com aquele garoto. As cenas de combate também merecem destaque, sendo apresentadas com uma edição dinâmica e nítida, além de planos que enfatizam a fluidez da animação e um timing perfeito para provocar momentos de verdadeira apreensão e euforia.

Fica claro, também, a diferença da profundidade de campo aplicada pelo cineasta, sendo que é quase impossível enxergar longe na selva de concreto, mas vemos montanhas, desertos e mares deslumbrantes, em belos e dinâmicos planos abertos, no mundo dos monstros. Dou destaque especial para as visualmente estonteantes, e emocionalmente vibrantes, sequências onde Ren/Kyuta descobre o verdadeiro significado de força e na outra onde, evocando claramente “Karatê Kid” (especialmente o último) e até mesmo “Tarzan” e “Rei Leão”, ele atinge a maioridade treinando com seu mestre. Estes momentos são sempre bem acompanhados pela belíssima trilha de Masakatsu Takagi que, centrada em torno do piano, varia entre notas e acordes solitários e peças grandiosas, com toques de cordas asiáticas aqui e ali para auxiliar tanto na imersão da cultura japonesa como no estado espiritual de Ren/Kyuta.

Este, inclusive, é o tema central do longa, pois o que aquele menino mais precisa - assim como todos nós em determinados momentos de nossas vidas - é justamente encontrar o seu lugar no mundo.

Se parece esquisito que ele treine por anos as artes da espada sem um objetivo em mente, faça uma auto análise e descubra que todos os seus anos de escola foram tão frívolos quanto aqueles, sendo que apenas quando estamos perto de atingir a maioridade que realmente somos permitidos a traçar objetivos próprios. Uma ligação inteligente e relevante feita por Hosoda que, ao contrastar tanto a vida de Ren/Kyuta como a de Kaede, uma jovem humana que o ajuda a recuperar os anos perdidos de escola, mostra como nossa sociedade tende a oprimir e exigir demais dos jovens que deveriam passar mais tempo sendo… bem, jovens. E por mais que o longa perca um pouco de seu ritmo ao voltarmos para o mundo real, ele o recupera sempre que viajamos para a terceira locação que, não presente visualmente, se mostra a principal do longa: o duelo interno travado por Ren/Kyuta ao ter uma escolha impossível em mãos.

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Elogios devem ser feitos à Aoi Miyazaki, que interpreta o jovem Ren com toda a impertinência que tanto chamou a atenção de Kumatetsu, e à Shota Sometani, que auxiliam no design do personagem e o transformam em um jovem quieto e recluso. O elenco de voz, diga-se, está uniformemente bem e dedicado, e constato isso mesmo não entendendo uma singela palavra do que é dito (exceto alguns números, fiz judô na infância). Kazuhiro Yamaji confere a Iozen toda a nobreza que aquele misto de javali e leão, sabiamente colorido com dourado, ostenta; Masahiko Tsugawa se diverte com o mestre Soshi e sua aparente onisciência e presença; Lily Franky dá a Hyakushūbō toda a calmaria e doçura que faltam em Kumatetsu; Yo Oizumi encarna com vivacidade Tatara. Ainda assim, a voz que mais se destaca é aquela do mestre de Ren, um misto de explosão e teimosia de Koji Yakusho que conferem ainda mais carisma à Kumatetsu. Assisti o longa tanto na versão original quanto na dublagem brasileira, e aconselho fortemente que mantenham as vozes japonesas, por mais que o trabalho de dublagem brasileiro seja ok.

Mas o que mais se destaca em cada um destes personagens é o arco que traçam, sendo que nenhum deles termina o longa no mesmo lugar que começou. E é notável como Hosoda consegue conduzir o longa sem um vilão aparente, transformando a obscuridade do coração humano no maior obstáculo a ser superado. No clímax final, inclusive, ficam claras as influências de “Akira” quando Ren/Kyuta têm de enfrentar seu maior desafio e o fato de a resolução conceder à relação que dá título ao longa, entre mestre e aprendiz, um final digno onde ambos percebem que precisavam um do outro para encontrar a paz e, o lar, que não sabiam que tanto precisavam.

Ao final, o sorriso de um pai orgulhoso de seu filho, em frente a um céu azul, parece a imagem perfeita para terminar um filme que, entre monstros e espadas, nos conquista por seu coração.

9.1

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