Artigo | Johnny 316 (1998)

Deus, o Homem e A Máquina

“Uma vez que tem o seu centro no gesto e não na imagem, o cinema pertence essencialmente à ordem da ética e da política (e não simplesmente àquela da estética)”, Giorgio Agamben, Notas sobre o gesto

Para Agamben, um gesto é caracterizado como um meio sem finalidade. Um movimento da qual a única função é a própria exibição centrípeta do ato que, de forma independente e autossuficiente, responde a sua lógica sem necessitar de uma centrifugação linguística ou um significado exterior que escamaria a aparência. Aquilo que vem de sua fonética já basta para a transmissão: “O gesto é, neste sentido, comunicação de uma comunicabilidade”.

O gesto no cinema também exerce a função de responder por um espectador incapaz de participar da experiência. Partindo do princípio de que o fenômeno cinematográfico desenvolve-se não diante da individualização do público, e sim da sua massificação psicológica. É dentro dessa anônima homogeneidade que passamos a nos identificar com o outro na tela – caminhando assim para ordem da ética e da política -, com o que André Bazin define no texto “Teatro e Cinema” como uma adesão passiva, o contrário do teatro, que necessita de uma consciência individual ativa.

Nós, espectadores, inseridos nessa passividade do observador, não só aceitamos a descrença verossimilhante como também exercemos um papel de crer em um mundo sensível de modo quase espiritual. No cinema não há olfato, tato ou paladar, e as imagens e sons que provocam este fenômeno são apenas projeções miméticas de onda partículas. Logo, nós, quanto indivíduos empíricos, somos incapazes de dialogar com a tal linguagem cinematográfica, e daí que provém a nossa beatitude – justamente, do culto. O cinema não é feito para os ímpios.

Isso porque um filme é feito à imagem do homem, e ele é materialmente o próprio corpo dessa massa de observadores: a consciência. Se conserva no vazio de seu espaço, o som e o silêncio vibram como nossos tímpanos e a imagem é a própria superfície ocular, lubrificada e renovada pela montagem no intervalo de um piscar de olhos, assim como a palavra sacia a nossa inquietude vocal de perguntas e respostas.

Mas, e o gesto? O gesto no cinema surge da impossibilidade do tato. A capacidade ordinária do cinema quanto arte de captar esse sentido sem que seja apenas atiçá-lo é praticamente nula. Logo o domínio desse sentido permanece sempre no campo do não-físico, tão intangível quanto uma afirmação de uma existência divina. Então, se a câmera compartilha a virtualidade sensorial de Deus, é o gesto como objeto biológico que supre a ausência desse toque divino, materializando assim a consciência de sua existência – ou, ao menos, a sua remota possibilidade em outro plano.

E por essa razão, qualquer filme que tenha como forma ou conteúdo a representação da religiosidade partindo de um valor transcendente e não somente da ordem da moral, e aqui podemos evocar a obra de Carl Theodor Dreyer ou do próprio Robert Bresson nesse sentido, irá de encontro a fundamental ideia de que é no gesto que reside a expressão do sagrado – e também do profano, como Johnny 316 tanto prega quanto lamenta.

O Crepúsculo dos Ídolos e a Estética MTV

A liturgia particular de Johnny 316 readapta a peça de Oscar Wilde “Salomé” enquanto mescla um romance trágico com um teste de fé no mundo contemporâneo. Pouco importa essa passagem de sua narrativa, pois seu páthos é verdadeiramente evocado pelo fluxo delirante de sua mise-en-scène fragmentada e estilizada, que explora a castidade sexual e moral de Johnny (Vincent Gallo) e a violência sofrida e os desejos amorosos de Sally (Nina Brosh).

O mundo tentador dos hereges é, também, o mundo da estética MTV. O filme é um grande extrato de um videoclipe noventista, no qual o mundo contemporâneo está preso na câmera lenta e na elipse, na qual o ritmo e a uniformidade da cena são assegurados pela sonoridade que é imposta externamente. Seja a trilha sonora ou o voice over, no qual estilização contínua e cíclica, desde o exagero no contraste da coloração até aspectos mais estruturais quanto escalas, ângulos e movimentos de câmera, delimitam um espaço mental de forma não concisa ao ponto de criar um tom etéreo a este micro verso cheio de lugares transitórios como fachadas, halls de entrada e estabelecimentos vagos. Um mundo preso no limbo de uma máquina de lavar, como profere o reflexo de um dos quadros do filme. A própria luz esbranquiçada e estourada que o permeia também tem esse aspecto transitório, como se estivéssemos nos primeiros segundos de um olhar após sair de um interior para a rua, cegados enquanto fechamos a íris buscando readaptar-se ao conforto, que, neste caso, nunca vem.

É evidente essa caracterização quando Sally, após se demitir do seu trabalho, vai a uma casa de prostituição buscar ajuda com o cafetão. Parte do diálogo acontece, justamente, na porta do local, antes de sermos arrastados completamente para aquele inferno estetizado, sombreado pela luz artificial amarelada e o vermelho sinuoso do fundo. Com a volúpia de afirmações de posse, “eu posso te dar tudo que você quiser”, diz o cafetão. Alternadamente vemos a dança de uma prostituta desnuda – essa montagem não só revela violentamente a intenção da personagem, como intencionalmente violenta ao interpelar-se no meio, a forçando a permanecer ali. E assim, o enquadramento se quebra criando outro quadro interno a partir de uma porta que os isola, reflete e premoniza, no qual a composição insinuosa cria um retrato desse mundo estruturalmente obsceno.

O quadro da Marilyn Monroe revelado na decoração do fundo de quando ela finalmente escapa, mostra como o pop art tornou-se o objeto de culto sob a moral do filme. Afinal, estamos no Boulevard Hollywodiano à la Michael Bay e a cultura é regra de consumo. A revelação divina que faz Sally abandonar seu emprego vem através da televisão, da novelização da própria peça de Wilde que nos evidencia que a transcendência do contemporâneo reside no paródico, na auto reverência, na verborreia visual como pastiche presente tanto na arte do filme quanto nos testemunhos das personagens. Esse fluxo é também um reflexo formal de seu tempo, já que a modernidade é definida por um grafismo de hiper estimulação de símbolos e, no novo ritmo, as profecias não são mais escritas por mártires e sim serigrafadas por designers em muros grafitados com anúncios - eis a nova gravura sacra.

Apesar deste bizarro mundo, a escolha de Johnny é a escolha de Deus. E, deliberadamente, se toma o caminho da humildade através da sua decupagem, que parece constantemente resistir ao pecado do estético. Apesar de ser flagelada pela montagem em passagens mais caóticas, carrega em si uma essência minimalista e singela, atenta a pequenos movimentos e com um ritmo temporal muito intimista. Como podemos sentir no fechamento e a abertura das escalas sempre focadas no corpo das personagens, principalmente os seus rostos, mostrando um valor individual que transcende os meros efeitos da plasticidade e busca, através do olhar e da expressão, o verdadeiro espírito dessas personagens foram suas caracterizações exteriores.

Logo, é evidente que se é criada uma atenuante tensão que amarra todo o filme sensorialmente e nos conduz até a sua resolução teatral. Vemos em conflito a resistência ao impulso frente ao excesso deste próprio impulso, através do qual a forma cabal do filme olha para toda essa potência sentimental. Que sim, reconhecemos - toda a raiva, o desejo, a violência, a serenidade, o medo e o êxtase das fantasias desses personagens -, mas que sempre permanece impassível, afastada, estranha.

E a estranheza aqui possui um duplo sentido relacionado também ao anônimo, uma vez que o filme sobrepõe esse fluxo a um falso realismo intervencionista de um documentário que capta testemunhos diretos ou indiretos, diegéticos e meta diegéticos. Alinhando nosso olhar ao do transeunte quando dirige-se diretamente para a câmera – e novamente, estamos num estado de tensão, presentes na espacialidade do real junto a câmera, mas desconectados por uma força criadora que empurra o tal fluxo. A realidade confessa a partir da ficção retornando a ela, e no campo do hipotético, O Deus-Fictício se materializa no Deus-Cinematográfico, pois apenas o cinema permite um personagem ser a divindade enquanto crê nele.

E Vincent Gallo, apesar de ser decrépito e desprezível na realidade, é um ser genial enquanto criador e ator na ficção e vive esse pregador alienígena de vestes imaculadas e um olhar azulado que carrega todo o peso do mundo. Também a sua leveza, quando como sobrevoa o reino urbano sonhador como um travelling de Fellini, libertando e cativando seus apóstolos que formam uma colagem de retratos caricaturais da cultura estadunidense.

Dentre estes, está Sally, que em toda sua graça e inocência quase infantil, passa a ser alvo de tormentos por diversos personagens e pelo próprio pai profético que a renega. Ela é cordeiro sacrificado pelo mundo profano, e diferentemente dos monstros da carne que a rodeiam, o que é revelado quando realiza suas vontades ao clamar pela morte de Johnny é o próprio amor que considerava divino, finalmente permitindo-a tocá-lo.

Se o Gesto Exprime o Espírito, a Montagem Revela a Carne

Retornando ao tema de introdução, o gesto não tem em si um valor prático como é o de uma ação normal dentro do cinema. Ao invés de completar uma unidade de sentido ele isola-se desse contexto, se destaca justamente por não ser compreendido sob uma única ordem, seja esta narrativa, científica, sociológica, histórica ou psicológica.

Ele habita o limiar entre o reflexo da mobilidade e o intuito da configuração, é inconsciente e consciente, sempre carregado de um quê de estranheza quanto expressão. Quase como uma anomalia corporal ou um espasmo que instiga o espectador, que usa toda uma amálgama de óticas interpretativas para poder solucioná-lo. Mas isso apenas ofusca a resposta que reside no próprio devir do gesto ao encontro do universal o fazendo entrar em um estado de comunhão espiritual com o mundo que o rodeia, revelando, assim, a beleza desse isolamento.


Um rosto bonito, como escreveu La Bruyère, é a mais bela das visões. Há uma lenda famosa que diz que Griffith, comovido pela beleza de sua protagonista, inventou o close-up para capturá-la com mais detalhes. Paradoxalmente, portanto, o close-up mais simples é também o mais comovente. Aqui, nossa arte revela sua transcendência com mais força, fazendo a beleza do objeto significado irromper no signo

Jean Luc-Godard, Defence and Illustration of Classical Construction (1968)

E, uma vez que espiritualidade é acedida a partir do gesto, a forma material de expressar o corpo é através da montagem (há até uma poética em relacionar essa aproximação dos corpos com a justaposição), que segmenta o espaço para outros corpos, constrói o ritmo, a dimensão e a proximidade da ação desses mesmos corpos no tempo. Ao ponto de que uma vez na história, a reação da plateia aos primeiros close-ups de Griffith foi de total confusão e estranheza, já que enxergavam não como partes de um todo, mas sim um corpo mutilado e isolado tamanha a intensidade que tinham e ainda têm.

Essa é o litígio de Johnny 316: o corpo, suscetível a virtude e ao pecado, contra o espírito, retido ao corpo portando retido aos seus impulsos carnais, ainda que almeje uma ascensão. E o gesto como expressão do pecado e da virtude, capaz de iluminar ou corromper o espírito, debate contra a montagem que responde à necessidade corporal ainda que exprima a consciência. Seguimos a sequência mais marcante do filme, na qual a atormentada Sally acompanha o pregador até o seu apartamento.

Um prelúdio desta cena acontece na cabine do elevador, enclausurando um clima sombrio que a torna um confessionário diante daqueles dois personagens ali imobilizados pela tensão, seja sexual ou psicológica. Aqui, o gesto é suprimido pelo estático como autocontrole e autoflagelamento exprimindo justamente a tentativa do espírito de controlar-se tanto na tentativa de Sally de comedir o seu desejo como na castidade de Johnny. Mas quando ele a olha, quebra esse rigor e traz aquele invólucro de maneirismos, e a montagem concretiza a fantasia com um certo pudor ao interpelar imagens de ambos tendo relações amorosas naquele espaço.

Dentro do apartamento essa mesma dinâmica persiste com o seu olhar etéreo buscando a santidade no fora-de-campo, longe do domínio da montagem e do pecado. Quando ela se senta finalmente a beira da cama, recorre a algo mais forte e longínquo, um plano de surrealidade como mantra de apaziguamento: Johnny a tronco nu numa redoma de vidro iluminada por luzes quentes. A cena torna-se progressivamente mais fragmentada na disrupção criada a partir da montagem que não se estabelece com raccords fluídos, impedindo justamente a corporalidade dos gestos (embate corpo espírito). Ao ponto que quando ele de fato decai em tentação ao baixar a cabeça, o novo plano inserido está de lado, e não mais frontalmente, fazendo com que os dois rostos se sobreponham – e o toque no limite da moral é realizado através da câmera, instaurando assim um novo ritmo de permissividade da qual Sally quase imita o gesto e a expressão celeste de paixão, no retorno do plano frontal de ambos.

“Eu quero que você me toque”, “Eu quero ficar com você o tempo todo”. Toque e tempo, gesto e montagem, corpo e espírito. “Quando eu fecho meus olhos, eu consigo ver tua cabeça, as tuas mãos. Consigo ver teus lábios e tua pele”. Seguimos nesse ritmo alucinante e anafórico sobre o toque, o desejo por esse toque e a privação desse toque ao ponto que o próprio gesto torna-se submisso ao desejo do corpo. Enigmaticamente, Sally levanta as suas mãos, mas ao invés de louvor, as encara e toca a si própria. Ela ajoelha-se, buscando um êxtase de outra santificação, e a imagem inverte o eixo compondo-se de forma obscenamente ilusória, e depois retorna ao contacto frontal da tentação. Uma erótica atmosfera permeia a cena como a cínica musicalidade com mãos sob o pescoço, lampejos de nudez, clavículas, a cabeça deitada na coxa, as mãos esfregam-se, contorcem agarram e, por fim, expulsam Sally dali.

Johnny só será tocado na sua morte, pois agora, sim, seu corpo se resume a carne imóvel. Pois era a incorporalidade, tal como a do gesto e do espírito, que justificava a sua existência.

“Se eu acho que Deus vive em Hollywood Boulevard? Se Deus não vivesse por lá, aqueles nomes não morariam por ali.”

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FBC @ Opinião - 08/11/25