Capa de Yeezus

BEYOND | Os 5 Anos da Revolução Silenciosa de Yeezus

 

Uma máxima permeia a carreira de Kanye West:

ame-o ou odeie-o, ele sempre vence. 

Vamos tirar duas coisas do caminho. Kanye West é, discutivelmente, o músico mais talentoso do século 21. De "The College Dropout" à "The Life Of Pablo" foram sete álbuns excelentes, agraciados pela crítica e (sua maioria) pelo público. Ele também é, indiscutivelmente, o artista mais polêmico do mesmo período, isso em qualquer forma de arte. 

Derrubar barreiras foi sempre uma coisa que ele esteve acostumado a fazer. Foi assim com seu primeiro, terceiro e principalmente quarto álbum, sempre deixando o hip-hop diferente de como era anteriormente. Havia sempre um novo som, sentimento ou conceito que o moveu para direções completamente diferentes de onde ele ou qualquer um estiveram antes. Em diversas dessas vezes ele foi aplaudido e fez com que sua música falasse mais alto do que as polêmicas ao seu redor. Mas isso não acontece com "Yeezus". 

Seu sexto álbum de estúdio soa como uma mistura do que aconteceu com "The College Dropout", "Graduation" e "808 & Heartbreak" e seus, discutivelmente, melhores projetos "Late Registration" e "My Beautiful Dark Twisted Fantasy". O primeiro grupo são os colonizadores, que influenciaram todos a seguir, enquanto o segundo consistem nas alturas inalcançáveis que ninguém se arriscaria a tentar chegar. Nenhum artista teria coragem ou audácia de recriar a produção orquestral de "Late Registration" ou o maximalismo perfeccionista de "MBDTF". E no meio entre esses está "Yeezus", que é tão revolucionário e desafiador que ninguém se atreve a chegar perto. 

Este álbum não está aqui para ser gostado e, se você não gostou e ainda não gosta, isso deve continuar assim. Ele não vai se tornar brilhante (como "808") com o tempo, ele já é, o que tem de mudar é a forma como a maioria das pessoas o enxerga e isso não acontecerá tão cedo. Até nossa sociedade atingir um futuro imprevisível, não seremos capazes de entender o quão importante ele deveria ser agora. 

 

O caminho é tortuoso, como Kanye mesmo falou sobre o álbum, "é um protesto a música". Agora ele está preferindo o "harder", não "better", "stronger" ou "faster". Todas as faixas são aquém de qualquer beleza, mas ainda assim são tão ressonantes que se tornam impossíveis de se ignorar. É aqui que a máxima se aplica, é praticamente impossível ser indiferente a "Yeezus". 

 

A influência do excelente trabalho do grupo de hip-hop experimental Death Grips é clara, inclusive se você gosta do álbum tente os maravilhosos "The Money Store" e "No Love Deep Web". Caso você tenha aquele amigo cético que fala que Kanye estava apenas surfando em uma onda já criada, ele está certo e errado ao mesmo tempo. O álbum é tudo que este sub gênero sugere, mas possui uma força propulsora que apenas uma estrela do calibre de Kanye West poderia providenciar. É claramente o trabalho de várias pessoas, que funciona justamente por conta da maior qualidade dele como artista, ser o maestro que torna a junção de tantos talentos algo melhor do que a soma de suas partes. 

Se precisasse ser sumarizado musicalmente, "Yeezus" seria um álbum de hip-hop industrial e eletrônico, com esparsos momentos de soul e R&B, centrado em torno do rap para fazer as coisas andarem, mas sem se apoiar demais em qualquer destes gêneros. Há uma variedade grande de arranjos, sintetizadores e batidas distorcidas, tudo com um filtro robótico que por vezes parece estar com um mal funcionamento. É um álbum extremamente obscuro e urbano, sujo, onde cada pequeno detalhe foi feito de forma minuciosa, desde os mais bem trabalhados aos mais aparentemente largados.

"He's really trying to raise the bar. No one's near doing what he's doing, it's not even on the same planet." 

Lou Reed, pouco antes de falecer, em 2013. 

Desde o começo Kanye deixa bem claro que este é um álbum diferente. De acordo com o próprio, "Blood On The Leaves" seria a escolha óbvia para a abertura, mas "Yeezus" não funciona como os outros projetos. A escolhida, "On Sight", uma faixa eletro e robótica extremamente semelhante ao trabalho de Daft Punk (que produz aqui), entrega desde seu título esta ideia. Suas letras se tornaram altamente polêmicas, quando Kanye rima: "bitches shaking like Parkinsons", ele tem todo o reverbério do público a sua vista e deixa bem claro que não dá a mínima, algo que ele também comenta na faixa: "How much do I not give a fuck? Let me show you right now 'fore you give it up". Adicione um coro de crianças dizendo que ele vai entregar a todos nós o que precisamos, e esta é facilmente sua faixa de abertura mais agressiva de todos os tempos.

A primeira letra de "On Sight" avisa que a Yeezy season está chegando. Essa, a mais abrasiva e divisória que ele proporcionaria em sua carreira.

Uma das grandes críticas a "Yeezus" está justamente no fato de suas letras parecerem simplórias demais e realmente, há uma quantidade absurda de palavrões e xingamentos, e tudo parece ainda mais ofensivo quando colocados em seus respectivos contextos. Assim como ele diz em "On Sight", é sabido que Kanye ligou o mínimo possível para as letras aqui, inclusive fazendo diversas alterações de último minuto e chamando Rick Rubin para fazer diversos cortes, deixando o álbum o mais compacto possível. Dois dias antes do lançamento, inclusive, ele teria escrito e gravado letras de cinco canções em apenas duas horas. 

Assim como todos grandes álbuns eletrônicos, o poder e o conceito aqui estão no design de som, enquanto as letras são apenas indicativos do que ele quer realmente dizer, quase como guias para os ouvintes mais preguiçosos. E várias delas funcionam justamente pelo fato de Kanye West ser, mesmo que muitos esqueçam, um excelente rapper, capaz de superar diversos de seus concorrentes com o mínimo esforço, graças a suas sempre excelentes e emotivas performances. 

A energia que ele traz em cada momento aqui flerta entre algo de tirar o fôlego e algo agoniante. "Black Skinhead", por exemplo, é demais para processar de uma vez só. Gritos, respirações ofegantes, batidas marciais insanas, um funk-rap-industrial, produzido de forma maravilhosa por Daft Punk, Gesaffelstein entre outros, e, ainda sim, alguns dos melhores momentos da faixa são catapultados pelo silêncio que precede o caos. É um tour de force, capaz de fazer a mais tediosa das mentes se alertar, desde a revista Rolling Stone à Noel Galagher à uma quantidade gigantesca de filmes, "Black Skinhead" é tão poderosa como irreverente, um caótico ritual tribalístico que não dura mais de três minutos, facilmente um de seus hits mais potentes. 

Há ainda mais gritos e respirações ofegantes em "I Am a God", a declaração que todos poderíamos prever mais cedo ou mais tarde. As letras são simples, das básicas comparações com seu maior ídolo, Michael Jackson, à alusões a todos que amam viver sob sua influência, mas preferem esquecer que ele trouxe o "real rap back", à uma insanamente engraçada conversa com o próprio Jesus. "He said what up Yeezus? I said man just chillin, tryna stack these millions". Tudo isso culima na frase mais icônica do álbum, você sabe, aquela no restaurante francês. É uma música extremamente obscura graças a seu sample indiano. O único motivo da faixa suceder se dá ao fato de que Kanye parece estar falando muito sério, mas ainda soando como se tudo fosse uma grande piada. 

I am a god
So hurry up with my damn massage
In a French-ass restaurant
Hurry up with my damn croissants

As únicas tendências de sua carreira que se comparam com seus sonhos de grandeza são suas investigações adentro da mente do homem no século 21. Na bizarra, pornográfica, "I'm In It", que conta com vocais de Bon Iver, ele faz com que faixas de um jovem Eminem soem como o mais inofensivo dos Macklemores. Seu flow é contagiante e, assim como na passada "Hell Of a Life", é uma faixa taboo que você pode se odiar por amar. É difícil de se aprovar letras que detalham uma história tão misógina, mas como Bon Iver disse, nunca ele ou Kanye falaram nada daquela natureza sobre qualquer mulher, é muito mais como se estivessem, de novo, fazendo uma narrativa sobre os mais profundos desejos da mente de um homem do que falando seus próprios. Se você prestar atenção, percebe que uma voz sinistra ecoa por trás dos vocais principais, quase como se fosse seu monstro interior rimando junto com ele. A profanidade exala desta faixa, e isso é proposital.

Ele é desrespeitoso com as mulheres em outras poucas oportunidades aqui, sendo que isso nunca foi algo que Kanye fez com frequência em sua carreira. Em "Send It Up" (ou "the greatest shit in the club since "In da Club"), as sirenes e as batidas contagiantes tiram um pouco da atenção de seu bom verso final, onde ele fala para algumas garotas estacionarem-se na parte de fora da festa, assim como seu Benz. O tongue in cheek, um de seus recursos mais utilizados para falar coisas absurdas e soarem como piada é recorrente em todo o álbum, e essencial para impedi-lo de ficar pesado demais.

Ainda assim, ele é melhor quando está confuso sobre as mulheres. Em "Guilt Trip" ele referencia Chewie e Star Wars quando fala sobre sua próxima saga após um término turbulento de um relacionamento (Amber Rose, Alexis Phifer, Kim?). A faixa termina então com um de seus principais seguidores, Kid Cudi, se perguntando ao final de o porquê de tudo ter tomado este rumo. "Hold My Liquor" é, ao mesmo tempo, engraçada e depressiva, uma faixa trazida diretamente de "808". O riff de guitarra é muito bem utilizado ao longo de toda a produção que, ao invés de chocar, te imerge no frio que a história é contada. Justin Vernon e Chief Keef estão bem, ambos indo para lugares obscuros diferentes, um tanto distante do valor de choque do resto do álbum, navegando por águas destinadas aos corações quebrados.

"Yeezus" atinge suas maiores alturas em dois momentos diferentes e que estão diretamente ligados por seu sample.  

Um deles é "Blood On The Leaves", a segunda música mais tradicional de Kanye aqui e era, como já dito, a escolha lógica para abrir o álbum. O sample vem a tona logo no início, o clássico de Nina Simone, "Strange Fruit", que, caso você não conheça, compara os corpos de negros enforcados à "estranhas frutas" nas árvores. Apesar de as letras contarem uma história completamente diferente, elas não estão tão distantes. Kanye está sob auto-tune mais uma vez, descrevendo outra história de separação, mas não se arrependendo tanto quanto reconhecendo o que aconteceu: um relacionamento abusivo, permeado por desejos de fama e pela droga favorita dos rappers em 2013, MDMA a.k.a. Molly a.k.a. Metafetamina. A composição é monumental, funciona quase como uma ópera com diversas sub tramas aparentemente sem conexão, mas que de uma forma ou de outra ligadas ao sentimento que a faixa passa. Racismo, materialismo, separação, reconciliação, fama, tudo é abordado em uma de suas obras mais assombrosas.

"I think it's one of the most modern pieces and so minimal, so powerful but at the same time so beautiful. It's a great, great song" 

Diretor David Lynch.  

O outro auge vem antes no álbum e também traz o mesmo sample, ou pelo menos, a frase "I see the blood on the leaves" é rimada três vezes seguidas. "New Slaves" é um dos momentos mais geniais de sua carreira. Uma visão direta sobre o racismo, consumismo e os estereótipos que a sociedade implica todos os dias, onde Kanye entrega alguns dos melhores versos de sua carreira, quase sempre sobre uma produção pulsante, porém extremamente magra e esparsada que explode apenas quando as palavras acabam. Temos um pequeno gosto de Frank Ocean ao final e um sample de “Gyongyhaju Lany” de Omega, que terminam de forma graciosa uma das faixas mais poderosas da década.

Foi dito anteriormente que "Blood On The Leaves" é a segunda faixa mais "Kanye" de "Yeezus", e isso é por causa do fechamento do álbum, talvez uma das grandes músicas de amor da nossa era e do hip-hop em si, a graciosa "Bound 2". Os samples soul estão de volta, a atmosfera é leve e as letras, apesar de diretas, são cômicas o suficiente para soarem como uma poesia. "I wanna fuck you hard on the sink" sintetiza o que a maioria dos caras querem falar para as garotas que amam, mas não falam. E todos esquecem como se conheceram, e sim admitir é o primeiro passo para reconciliação, mas a não ser que você possa rimar assim, é algo arriscado de se fazer. Ao referenciar Brad Pitt e "Clube da Luta", talvez Kanye esteja realmente tentando falar com todos os caras no planeta, e talvez isso funcione quando as pessoas entenderem o que esta faixa e seu estranho (GENIAL!) vídeo querem dizer. "Close your eyes and let the world paint a thousand pictures, one good girl is worth a thousand bitches".

A natureza polarizadora deste álbum, tanto quanto a ele próprio como à influência e impacto que teve, são apenas outras reflexões na carreira deste homem. Isso são anos antes de Kanye e Trump virarem amigos, anos antes de ele enlouquecer de vez, anos antes de onde estamos agora, quando o black power está em seu nível mais alto. Antes de tudo isso que vemos agora, Kanye havia declarado que sempre iria de contrário a tudo, em ordem de provar as coisas que prega. "Yeezus" nos mostra verdades que não queremos, desejos que escondemos, sentimentos que pensamos ser estranhos demais para serem, na verdade, reais. 

Não deixe nenhuma análise te enganar. "Yeezus" é um dos álbums mais aclamados da década, mas é tão difícil como qualquer álbum poderia ser. É abrasivo, repulsivo em alguns pontos e sua produção pode parecer muito suja para qualquer pessoa não acostumada. Sua inteligência brilha acima disso, e enquanto ainda deva demorar até a sociedade entender a importância de sua força, sempre que você o reouvir, vai sentir que se aproxima um pouco mais de entendê-lo.

Em "Yeezus", Kanye West se declara extremamente próximo de Jesus. No mundo que ele prega com tanta voracidade, ele pode realmente ser.